agosto 18, 2008

Ao Brasil, notícias da fome na Etiópia

Na Etiópia, onde trabalho em uma emergência nutricional com Médicos Sem Fronteiras (MSF), todos os dias me pergunto por onde anda a mão invisível e mágica do mercado global, o melhor regulador da economia. Nenhuma das pessoas que vi morrer de fome por aqui parecia conhecê-la. Em Kambata, no sul da Etiópia, fica bem clara uma das lógicas geradoras de fome (...) Por David Oliveira De Souza (*).


É CONSENSO para organizações internacionais como Unicef e FAO (Fundo das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação) que a produção mundial de alimentos é mais que suficiente para cobrir as necessidades terrestres. Porém, durante a leitura deste artigo, 60 crianças no planeta morrerão de desnutrição e, ao fim do dia, serão quase 20 mil. Na Etiópia, onde trabalho em uma emergência nutricional com Médicos Sem Fronteiras (MSF), todos os dias me pergunto por onde anda a mão invisível e mágica do mercado global, o melhor regulador da economia. Nenhuma das pessoas que vi morrer de fome por aqui parecia conhecê-la. Em Kambata, no sul da Etiópia, fica bem clara uma das lógicas geradoras de fome.

Dedicadas à produção de gengibre para o mercado externo, muitas famílias de pequenos produtores deixaram de produzir comida para consumo próprio, imaginando que, com a venda da colheita, poderiam comprar os insumos necessários a seu sustento. O preço do gengibre, contudo, ficou abaixo do esperado, o custo dos alimentos subiu, agravado pela crise mundial e pelo clima local e, como resultado, a fome chegou.

Crise semelhante se deu no Níger, em 2005, onde à insuficiente produção de subsistência uniram-se a seca e os ataques de gafanhotos à lavoura. Nesse país, onde MSF já cuidou de mais de 500 mil crianças desnutridas, ao mesmo porto de onde partiam navios abarrotados de cereais para exportação chegavam carregamentos de ajuda alimentar para a faminta população local. Embora o aumento do custo dos alimentos seja um importante fator de crise, é preciso lembrar que ele apenas agrava uma situação crônica.

Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), a desnutrição representa 10% de todas as doenças e já vem sendo há muito tempo negligenciada pela comunidade internacional. De acordo com a Campanha de Acesso a Medicamentos Essenciais, iniciativa de MSF, apenas 3% dos 20 milhões de crianças com desnutrição severa recebem o tratamento recomendado pela ONU.

Quando a escassez de comida é intensa, as famílias reduzem o número de refeições e precisam abrir mão de bens essenciais, como gado e até a própria casa. Se a situação piora, as estruturas da comunidade entram em colapso, aumenta a violência, iniciam-se grandes ondas migratórias e os indivíduos menos valorizados na cadeia produtiva, como meninas e órfãos, tendem à marginalização.

O momento final e mais grave ocorre quando há falta absoluta de alimentos, afetando uma grande população por um longo período. Nesse caso, o cenário é desolador, e a mortalidade, altíssima. Em um acelerado processo de degradação humana, parte de um povo vai sendo consumido e sua descendência poderá ter a capacidade cognitiva prejudicada pela falta de acesso aos nutrientes adequados.

Aqui em Kambata, diariamente mais de 3.000 pessoas procuram nossos centros de nutrição. Há dias que precisamos interromper as atividades, com medo de perder o controle da multidão desesperada. Alguns pacientes estão tão fracos que nem conseguem engolir.

É difícil descrever a aparência da fome. A criança desnutrida é triste, parada, tem cara de velhinho e, algumas, por causa da carência protéica, ficam com as pernas e o rosto inchados. Mesmo assim, é possível salvar muitas vidas e, especialmente no caso das crianças, após duas semanas de tratamento, o rosto muda tanto que quase não dá para reconhecer. Duas identidades me são evocadas no trabalho na Etiópia. A de médico e a de brasileiro. A de médico de MSF Brasil me faz lembrar que é muitas vezes nos centros de saúde que fenômenos como a fome e a violência mostram sua cara mais feia e que, embora sejam essenciais programas de desenvolvimento para evitar as crises, eles não devem ser feitos em detrimento de respostas emergenciais necessárias.

A de cidadão brasileiro me faz desejar que nosso país, que tem produzido algumas tecnologias bem-sucedidas de combate à pobreza e à fome, seja mais proativo em sua política de cooperação com outras nações do Sul. O Brasil que precisa de ajuda também tem condições de ajudar.

Há alguns dias, perdemos Mamushe, uma menina com nove anos, desnutrição severa e ares de princesa etíope. Sempre que Mamushe me perguntava onde era o Brasil, eu respondia: "Longe". Na madrugada em que tentei reanimá-la, o corpo fraquinho não resistiu e se foi. Ao ouvir o pranto de sua mãe, lembrei-me de uma frase proferida pelo escritor moçambicano Mia Couto na ocasião do tsunami: "Nunca é longe o lugar de onde nos chega um grito de apelo. O sofrimento atingiu também a nós. O vosso luto é o nosso luto".


(*) David Oliveira de Souza, 32, é médico e responsável pela Unidade Médica de Médicos Sem Fronteiras no Brasil. Especialista em medicina de família e comunidade pela UERJ e em clínica médica pela UFRJ, mestre em relações internacionais pelo Instituto de Estudos Políticos de Paris, é professor de saúde coletiva da Universidade Federal de Sergipe. Publicado na Folha de S. Paulo em 17/08/2008 (clique aqui para ver a referência).

janeiro 07, 2008

Mulheres, principais vítimas da guerra na República Democrática do Congo

Por Gustavo Barreto - gustavo@fazendomedia.com

Na penúltima semana de 2007, mais uma organização internacional chamou a atenção para a situação da República Democrática do Congo (RDC), país que passa por uma guerra civil desde 1998 e cujo fim se deu “oficialmente” em 2004. A Médicos Sem Fronteiras (MSF), organização que trabalha principalmente na área da saúde com países em situação de intenso conflito social, político e étnico, destacou em seu relatório de fim de ano uma lista de 10 crises humanitárias que não tem a devida atenção da mídia internacional.

RDC e Colômbia, destaca a MSF, “ambos países devastados pela guerra civil ainda corrente e por maciços deslocamentos internos de civis, dominaram a lista na última década, cada um deles aparecendo nove vezes nela”. Uma das principais preocupações da entidade é a província leste de Kivu Norte, onde conflitos tem se desenvolvido de forma devastadora para as comunidades locais.

“Mais de um ano após as primeiras eleições democráticas em décadas, que supostamente trariam estabilidade para essa região em conflito, os confrontos entre os grupos armados continuaram em Kivu Norte. Apoiados pela Monuc, a força das Nações Unidas, o governo está agora em aberto combate com as forças do líder rebelde Laurent Nkunda. Um grande número de diferentes grupos como os Mai Mai e os rebeldes hutus ruandeses das Forças Democráticas da Libertação de Ruanda (FDLR, na sigla em inglês) estão envolvidos no conflito”, afirma o relatório.

A entidade afirma ainda que centenas de milhares de pessoas tiveram de deixar suas casas em 2006 e 2007, e muitas dos quais passaram por deslocamentos inúmeras vezes. “Freqüentemente, os deslocados são obrigados a se esconder na floresta, com pouco acesso à comida ou acessos básicos de saúde ou sob constante ameaça de ataque por parte de vários grupos armados”. Com isso, os deslocados congoleses tornam-se cada vez mais vulneráveis a doenças facilmente tratáveis e condições como desnutrição, malária e infecções respiratórias e complicações obstétricas.

Gary Knight/MSF
O investimento militar dos países ricos você pode ver aqui em ação: cirurgiões no Hospital de Bon Marche, em Bunia, tentam salvar a vida de um garoto atingido por uma granada. Foto de Gary Knight/MSF

Estima-se, conforme o Fazendo Media destacou no primeiro artigo da série sobre a RDC (“Países ricos mantêm guerra permanente no Congo”), que 5 milhões de pessoas morreram desde o início oficial dos conflitos, em 1998, não só por causa da violência, mas também por doenças negligenciadas no país, como a malária e o sarampo. O país tem uma população de 54 milhões, em franco declínio por causa da crise humanitária.

Na segunda parte do especial deste Fazendo Media, abordaremos um aspecto que a Médicos Sem Fronteira considera “particularmente perturbador” sobre o conflito: o alarmante índice de violência sexual. Em Kivu Norte, a entidade afirma ter tratado de mais de 2.375 vítimas de violência sexual entre janeiro e outubro de 2007. No distrito de Ituri, cenário do conflito entre diferentes grupos armados que operam em Norte Kivu, 150 mil deslocados internos ainda estão sem poder voltar para casa. Através do Hospital Bon Marché em Bunia, capital da região de Ituri, MSF tratou 7.400 vítimas de estupro durante os últimos quatro anos. Mais de um quinto dessas pessoas foram internadas durante os últimos 18 meses.

Narcotráfico agrava o problema

Além da questão do narcotráfico, outra entidade presente na região – a Anistia Internacional – também tem alertado sobre o problema dos estupros e humilhações de mulheres na região. O relatório “República Central Africana: cinco meses de guerra contra as mulheres” (“Central African Republic: Five months of war against women”), de novembro de 2004, documenta os atos cometidos por combatentes deste país e dos vizinhos Chade e Congo. O relatório denuncia a ocorrência de estupros em massa na República Central Africana (RCA). No documento, a organização de direitos humanos diz que a comunidade internacional deveria fornecer recursos humanos e materiais e assegurar que o governo do país proteja os direitos das mulheres e meninas que sofrem com abusos sexuais.

De acordo com o relatório, centenas de mulheres e jovens foram submetidas a estupros, abusos sexuais e outras formas de violência entre o final de 2002 e o início de 2003. A maior parte das violações relatadas aconteceram exatamente no norte de Bangui, na fronteira com a República Democrática do Congo. Desde meninas de oito anos até mulheres com mais de 60 foram violentadas, de acordo com informações de organizações humanitárias locais. Muitas foram atacadas dentro de casa ou enquanto fugiam das zonas de combate. Outras tantas morreram. Os familiares que tentavam salvá-las também foram ameaçados ou assassinados. Em alguns casos, meninos eram forçados a fazer sexo com suas próprias mães e irmãs.

Apesar de estupros e outras formas de violência sexual estarem previstos no Código Penal centro-africano, o governo não fez nada para proteger as vítimas, não puniu os criminosos e negou à época que os crimes tenham ocorrido, acusa a Anistia.

Em 2004, a Organização Mundial da Saúde estimava que havia 25 mil sobreviventes de violência sexual no Kivu Sul, província oriental da República Democrática do Congo, número bem aquém da realidade, segundo organizações locais. “Eu tenho a certeza de que nesta província mais de 100 mil mulheres foram vítimas de estupro”, afirmou a ativista Christine Schuler-Deschryver naquele ano. Schuler-Deschryver estava em Bukavu, a capital da província, e recenseou mais de 14 mil casos de estupro (leia o nosso artigo anterior sobre as denúncias de Schuler-Deschryver).

Uma criança em um hospital da MSF, em Bunia. Foto de James Nachtwey/MSF
Uma criança em um hospital da MSF, em Bunia. Foto de James Nachtwey/MSF

Desde novembro de 2002, o Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (Pnud) financia um projeto de assistência às vítimas de estupros na RCA. Os cuidados às vítimas incluem assistência médica e psicológica, mas a AI afirma que mulheres que passaram por experiências como estas precisam também de acesso à justiça, investigações imparciais para identificação dos culpados, indenização e acesso à informação.

O informe da ONU para o Desenvolvimento Humano (IDH) de 2000 apontou que, entre 173 países pesquisados, o Congo aparecia na posição de número 152. Atrás dele estão países em grande parte da África, entre eles Uganda, Ruanda e Etiópia. Entre 190 países, o Congo possui a nona maior taxa de mortalidade de crianças até 5 anos (UNICEF, 2000), de 207 crianças para cada 1.000 nascimentos.

Em 1998, o país recebera apenas 126 milhões de dólares em ajuda oficial (Pnud, 2000). Apenas a título de comparação, em abril de 2003 o Departamento de Defesa dos Estados Unidos levantou US$ 1,7 bilhões em ajuda para "socorro" (após o intenso bombardeio a civis, um típico crime de guerra) e “reconstrução” do Iraque. A CIA reconhece a existência do país, destacando em seu relatório, logo no início, que a República Democrática do Congo é “um dos maiores produtores de petróleo da África”.

Histórico do controle de armas leves no mundo

As armas leves, ao contrário do que argumentam muitos grupos que supõe ser esta uma falsa questão, é uma importante fonte de renda para alguns países desenvolvidos e um motor para o moderno genocídio globalizado. Em junho de 2006, líderes da comunidade internacional se reuniram em Nova Iorque para discutir o Programa de Ações das Nações Unidas contra Armas Leves. A regulamentação do comércio internacional desta categoria de armamento, por exemplo, ainda é um tabu entre as nações mais poderosas.

Foi precisamente o genocídio em Ruanda, juntamente com outros conflitos e atrocidades na África Central e Ocidental, que fez esta questão vir à tona em todo o mundo e, especificamente, nas instâncias da ONU. Estima-se que 35 dos 191 países-membros das Nações Unidas controlam cerca de 90% das exportações mundiais de armas leves. Entre 1997 e 2004, a participação dos países em desenvolvimento na importação mundial dessas mercadorias chegou a 68,5%. São as armas empregadas na maior parte dos atentados graves aos direitos humanos listados pela Anistia Internacional, e ainda por 85% das mortes que eles causaram.

Sete países do G8 – Canadá, França, Alemanha, Itália, Rússia, Reino Unido e os Estados Unidos – estão entre os maiores exportadores. A exceção é o Japão e, como já relatado aqui, a China também se destaca nesse cenário. Estes Estados alimentam em equipamentos militares, armas e munições as regiões em que acontecem violações maciças aos direitos da pessoa. É o que indica o relatório da AI “Os países exportadores de armas do G8 e o trânsito irresponsável de armas” (“Les pays exportateurs d’armes du G8 et les transferts d’armes irresponsable”), de junho de 2005.

Algumas lacunas e fraquezas, comuns às leis sobre exportação de armas na maior parte dos países do G8, contradizem seu engajamento a favor da redução da pobreza, da estabilidade e dos direitos humanos. Este trânsito de armas atinge alguns dos países mais pobres do mundo e os mais assolados pelos conflitos – dentre eles o Sudão, Miamar (Birmânia), a República do Congo, a Colômbia e as Filipinas. Segundo, Brian Wood, autor de artigo sobre o tema no Le Monde Diplomatique em junho de 2006, as exportações das grandes potências são completadas de maneira crescente pelos concorrentes de importância média, principalmente Brasil, Israel, Holanda, Singapura, Coréia do Norte e África do Sul.

Wood completa: “Estes são os fornecedores que formam o coração da concorrência no mercado mundial de armas, trabalhando freqüentemente em rede com os agentes de transportes e de finanças. Apenas cerca de 30 países possuem leis que regulamentam essa atividade. Por isso, essas pessoas quase não temem punição, ao colaborar com os funcionários públicos na venda de armas a bons preços para dirigentes políticos, chefes militares e até chefes de guerrilhas rebeldes”.

Em julho de 2005, lembra Wood, um relatório da Anistia Internacional denominado “República Democrática do Congo: os fluxos de armas com destino ao leste” (“République démocratique du Congo: Les flux d’armes à destination de l’est”) de julho de 2005, revelava que grandes quantidades de armas e de munições foram transferidas dos Bálcãs e da Europa do Leste para a região dos Grandes Lagos africanos, assim como foi descrito no caso da China.

Na República Democrática do Congo (RDC), as entregas continuaram a acontecer a despeito do processo de paz iniciado em 2002 e do embargo sobre armas das Nações Unidas. “Os corretores e transportadores de armas envolvidos no tráfico com destino à região dos Grandes Lagos são originários de países tão diferentes quanto Albânia, Bósnia, Croácia, Chipre, República Tcheca, Israel, Rússia, Sérvia, África do Sul, Reino Unido e Estados Unidos. Pode-se seguir com um traço percurso das armas e munições até os governos da República Democrática do Congo e Uganda, e depois a distribuição de armas às milícias e outros grupos armados na região leste da República Democrática do Congo. Ora, estes grupos dedicam-se a atrocidades que podem ser qualificadas como crimes de guerra ou crimes contra a humanidade”, argumenta, Wood.

O caixão de uma menina é levado de seu vilarejo para o funeral. Foto de James Nachtwey/MSF
O caixão de uma menina é levado de seu vilarejo para o funeral. Foto de James Nachtwey/MSF

A proliferação das armas, sobretudo das armas leves, tem em geral um impacto duradouro, como na região do rio Mano, na África ocidental, com conseqüências catastróficas na Libéria e em Serra Leoa. Para Wood, diversos testemunhos sinalizam a proliferação, a reciclagem e talvez novas chegadas de armas leves na Costa do Marfim, apesar do embargo das Nações Unidas que foi votado em novembro de 2004. O acesso fácil às armas leves nestes países contribui para sabotar o processo de desarmamento, de desmobilização e de reintegração, e encorajou as violações ao cessar-fogo, os conflitos inter-étnicos no oeste e o uso persistente de crianças-soldados.

Após este pouco transparente, porém evidente processo de comercialização ilegal de armas envolvendo países ricos, atravessadores internacionais e governos locais corruptos, crises são deflagradas e a comunidade internacional se demonstra atônita diante dos acontecimentos – ora por ignorância, ora por cinismo, ora por oportunismo. É neste contexto que são desprezíveis as declarações da Casa Branca, para citar dois casos mais recentes, ao se declararem contrários às investidas militares dos governos da Turquia (outubro de 2007) e do Paquistão (novembro de 2007) contra seu próprio povo, seguido de desrespeito freqüente aos direitos fundamentais e às liberdades civis.

O ilustrativo caso do Paquistão

No caso da recente crise política no Paquistão, que emerge na mídia mas é freqüente dentro do contexto de violação de direitos nacional, os Estados Unidos deixaram claro que não iriam suspender a ajuda militar ao Paquistão em resposta ao estado de exceção decretado pelo presidente Pervez Musharraf. A informação foi dada por um porta-voz do Pentágono no dia 3 de novembro de 2007. "Neste momento, a declaração não afeta nosso apoio militar aos esforços paquistaneses na guerra contra o terrorismo", afirmou o secretário de imprensa do Pentágono, Geoff Morrell, acrescentando que não está previsto, de forma iminente, fazer uma revisão da ajuda militar a esse país.

O secretário americano da Defesa, Robert Gates, que estava com viagem marcada para a China, não tem planos imediatos de se reunir com seu colega paquistanês para analisar a decisão de Musharraf, segundo Morrell. Segundo a agência de notícias France Presse, Morrell deixou claro que "o Paquistão é um aliado muito importante na guerra ao terrorismo, e ele [o secretário de Defesa] está acompanhando muito de perto os acontecimentos que se sucedem lá (...) Isto é algo que acompanhamos muito de perto durante a semana. Deixou-se claro, por parte de várias pessoas do nosso governo, que estamos decepcionados com a decisão do general Musharraf de declarar estado de exceção" no Paquistão, se limitou a dizer.

A “decepção” de Gates não é suficiente para barrar os negócios militares que os dois países mantém, demonstrando a relação estreita entre os países ricos e as seguidas violações de direitos fundamentais e de direitos políticos acorridas pelo mundo. O crescente anti-americanismo no Oriente Médio é conseqüência direta do apoio financeiro e militar que os Estados Unidos têm dado a governos corruptos e autoritários, como é notável no caso do Paquistão e da Turquia, para ficar nos dois exemplos citados.

A situação atualmente vigente na República Democrática do Congo é um dos casos mais notáveis de negligência da mídia internacional, corrompida por disputas menores ou mesquinhas. O noticiário internacional no Brasil e no mundo, ideologizado pelas disputas políticas – quase sempre por influência de países ricos e bélicos – nos fazem crer que líderes como Hugo Chávez (Venezuela), Mahmoud Ahmadinejad (Irã), Evo Morales (Bolívia) e Fidel Castro (Cuba), campeões de aparições negativas na imprensa, são a grande “ameaça à paz mundial”.

Estão entre aspas os termos “ameaça” e “paz mundial”, porque em um mundo em que ocorre hoje, com o conhecimento de líderes da comunidade internacional, uma crise como a da RDC, não existe “ameaça”, pelo fato de não existir algo sequer próximo à “paz mundial”. Este comportamento da imprensa e da comunidade internacional apenas nos alerta sobre a nossa falsa democracia e o grau de hipocrisia que nos assola, reiteradamente, ao longo de décadas de desprezo por seres humano tidos como inferiores.

Leia a seguir o resumo do relato de Eve Ensler, que destacamos nas duas últimas matérias sobre a RDC:

Resumo do relato de Eve Ensler no Conselho de Segurança das Nações Unidas

Volto do inferno. Procuro desesperadamente uma maneira para vos contar o que vi e ouvi na República Democrática do Congo. Procuro uma maneira para vos contar as histórias e as atrocidades e, ao mesmo tempo, evitar que fiquem abatidos, chocados ou afetados mentalmente. Procuro uma maneira de vos transmitir o meu testemunho sem gritar, sem me imolar ou sem procurar uma AK 47.

Não sou a primeira pessoa que denuncia as violações, as mutilações e as desfigurações das mulheres do Congo. Existem relatórios a respeito deste problema desde 2000. Não sou a primeira que conta estas histórias, mas como escritora e militante contra a violência sexual contra as mulheres, vivo no mundo da violação. Passei dez anos a ouvir as histórias de mulheres violadas, torturadas, queimadas e mutiladas na Bósnia, Kosovo, Estados Unidos, Cidade Juárez (México), Quênia, Paquistão, Haiti, Filipinas, Iraque e Afeganistão. E apesar de saber que é perigoso comparar atrocidades e sofrimentos, nada do que eu tinha ouvido até agora era tão horrível e aterrorizador como a destruição da espécie feminina no Congo.

A situação não é mais do que um feminicídio e temos que a reconhecer e analisar tal como é. É um estado de emergência. As mulheres são violadas e assassinadas a toda a hora. Os crimes contra o corpo da mulher já são horríveis por si. No entanto, há que acrescentar o seguinte: por causa de uma superstição que diz que se um homem viola mulheres muito jovens ou muito idosas obtém poderes especiais, meninas de menos de doze anos de idade e mulheres de mais de oitenta anos são vítimas de violação.

Também há que acrescentar as violações das mulheres à frente dos seus maridos e filhos. Mas a maior crueldade é a seguinte: soldados soropositivos organizam comandos nas aldeias para violar as mulheres, mutilá-las… Há relatos de centenas de casos de fístulas na vagina e no reto causadas pela introdução de paus, armas ou violações coletivas. Estas mulheres já não conseguem controlar a urina ou as fezes. Depois de serem violadas as mulheres são também abandonadas pela sua família e a sua comunidade.

No entanto, o crime mais terrível é a passividade da comunidade internacional, das instituições governamentais, dos meios de comunicação… a indiferença total do mundo perante tal extermínio.

Passei duas semanas em Bukavu e Goma a entrevistar as sobreviventes. Algumas eram de Bunia. Efetuei pelo menos oito horas de entrevistas por dia. Almocei e fui a sessões de terapia com estas mulheres. Chorei com elas. O nível de atrocidades supera a imaginação. Não tinha visto em nenhuma parte este tipo de violência, de tortura sexual, de crueldade e de barbárie. No leste do Congo existe um clima de violência. Nesta zona as violações tornaram-se, tal como me disse uma sobrevivente, um “esporte nacional”.

As mulheres são menos que cidadãs de segunda classe. Os animais são mais bem tratados. Parece que todas as tropas estão implicadas nas violações: as FDLR, as Interahamwe [genocídas hutus ruandeses], o exercito congolês e até as forças de paz da ONU. A falta de prevenção, de proteção e a ausência de sanções são alarmantes.

Passei uma semana no Hospital de Panzi, a viver numa aldeia de mulheres violadas e torturadas. Era como uma cena de um filme de terror futurista. Ouvi histórias de mulheres que viram os seus filhos serem brutalmente e cinicamente assassinados. Mulheres que foram forçadas, debaixo da ameaça de armas, a ingerir excrementos, a beber urina ou a comer bebês mortos. Mulheres que foram testemunhas da mutilação genital dos seus maridos ou violadas durante semanas por grupos de homens. Estas mulheres faziam fila para me contar as suas histórias. Os traumas eram enormes e o sofrimento extremamente profundo. Sentei-me com mulheres que tinham sido cruelmente abandonadas pelas suas famílias, excluídas por causa do seu cheiro e pelo que tinha sofrido.

Eu quero falar-vos da Noella. Mudei-lhe o nome para a proteger porque ela só tem nove anos de idade. A Noella vive dentro de mim agora, persegue-me, leva-me a tomar ações, a lembrar. Ela é magra, muito inteligente e viva. O dano está no seu corpo ligeiramente torto, envergonhado, preocupado. Ela sente a ansiedade nos seus pequenos dedos. Começa a contar a sua história como se ainda a estivesse a viver. Para ela o tempo parou.

“Uma noite as Interahamwe vieram a nossa casa. Eles não deixaram nada. Pilharam a nossa casa. Levaram a minha mãe para um lado, o meu pai para outro e a mim para outro. Levaram-me para o mato. Um deles pôs qualquer coisa dentro de mim. Não sei o que foi. Um disse para o outro, não faças isso, não faças mal a uma criança. O outro bateu-me. Eu estava a sangrar. Ele bateu-me mais e eu caí. Depois abandonou-me. Passei duas semanas com os soldados. Eles violaram-me constantemente. Às vezes usavam paus. Um dia deixaram-me no mato. Tentei caminhar até a casa do meu tio. Consegui, mas estava demasiado fraca. Tinha febre. Estava muito mal. Cheguei a casa. O meu pai tinha sido morto. A minha mãe voltou, mas em muito mau estado. Comecei a perder a urina e as fezes sem controle. Depois a minha mãe percebeu que eles me tinham violado e destruído. Eles registraram o que me tinha acontecido e trouxeram-me para aqui. Estou contente por estar aqui. Já não perco as urinas e ninguém se ri de mim. Os rapazes riem-se de mim. Já não tenho vergonha. Deus julgará aqueles homens, porque eles não sabem o que fazem. Quero restabelecer-me. Também penso em como eles mataram o meu pai. Sempre que penso no meu pai as lágrimas caiem-me pela cara abaixo.”

O Dr. Mukwege, que, tanto quanto posso dizer, é um tipo de médico “santo” no hospital, disse-me que a uretra da Noella está destruída. Sendo tão jovem, ela não tem tecido suficiente para operar. Terá de esperar oito anos. Oito anos de vergonha e humilhação. Oito anos em que será forçada a recordar todos os dias o que aqueles homens lhe fizeram na floresta antes dela ter idade suficiente para saber o que era um pênis. Ela é incontinente. O médico disse-me: “O que acontece a estas jovens é terrível. Elas têm muito medo de ser tocadas por homens. Às vezes leva semanas até que eu as conseguir tratar. Dou-lhes bombons e trago-lhes bonecas.”

As mulheres sofrem imensamente. Estão debilitadas pelas violações, as torturas e a brutalidade. Não têm praticamente apoio nenhum. Depois de viver estas atrocidades são incapazes de trabalhar nos campos ou de transportar coisas pesadas, por isso deixam de ter rendimento. Vi chegar pelo menos doze mulheres por dia a essa aldeia. Chegavam a coxear e apoiadas em bengalas feitas à mão. Várias mulheres contaram-me que “as florestas cheiravam a morte” e que “não se podia dar nem cinco passos sem tropeçar com um corpo”.

Durante a semana que passei em Panzi, o governo cortou a água e, por isso, o hospital onde havia centenas de mulheres feridas ficou sem água. O mesmo hospital pelo qual as mulheres tinham andado mais de sessenta quilômetros porque não havia outro mais perto. O mesmo hospital onde não havia nada para comer (duas crianças morreram de má nutrição num dia), onde as mulheres tinham de ficar durante meses, às vezes anos, porque as suas aldeias eram tão perigosas ou porque eram tão rejeitadas, após terem sido violadas e desonradas, que não tinham um lugar para onde voltar, onde as mulheres não podiam apresentar queixa porque os violadores podiam facilmente comprar a sua saída da prisão, voltar e violá-las outra vez, ou matá-las.

E enquanto nós estamos aqui a escrever o nosso relatório, há mulheres que estão a ser violadas, meninas que estão a ser destroçadas para sempre, mulheres que estão a ser testemunhas do assassínio (a golpe de catana) das suas famílias e outras que estão a ser infectadas pelo o vírus da AIDS. Onde está a nossa indignação? Onde está a consciência das pessoas?

Em 1999, eu voltei aos EUA de uma viagem ao Afeganistão ainda debaixo do poder dos talibans. As condições das mulheres, a violência... era uma loucura. Dirigi-me a todas pessoas que consegui encontrar, canais de televisão, revistas, líderes etc. Com exceção de uma revista, ninguém parecia estar interessado no problema das mulheres afegãs. Naquela altura eu sabia que se não se interviesse, se o mundo não se levantasse e ajudasse as mulheres, haveria graves conseqüências internacionais. Sabemos o que aconteceu depois. Não apenas o 11 de Setembro, mas a reacção ao 11 de Setembro, a profanação do Iraque, a justificação dos ataques preemptivos [preventivos], o aumento da militarização e violência e o terror que ainda hoje continua a aumentar.

As mulheres são o centro de qualquer cultura e sociedade. Embora possam não ter poder ou direitos, como são tratadas, como são, ou não são, valorizadas, indica o que a sociedade sente em relação à própria vida. As mulheres do Congo são resistentes, poderosas, visionárias e solidárias. Com poucos recursos elas poderiam ser líderes do país e tirá-lo do seu atual estado de desordem, pobreza e caos; ou podem ser aniquiladas e, com elas, o futuro do país.

A República Democrática do Congo é o coração de África, o centro dinâmico e a promessa do futuro. Se se permitir a destruição das mulheres, mata-se a vida, não apenas do Congo, mas de todo o continente africano. Eu estou aqui, como artista e ativista, mas sobretudo estou aqui como um ser humano destroçado pelo que ouvi na República Democrática do Congo. Estou aqui para vos implorar, àqueles que têm poder, para declarar estado de emergência no Leste do Congo, para dar um nome ao que está a ser feito às mulheres: feminicídio. Para se juntarem à nossa campanha internacional para parar as violações do melhor recurso do Congo e dar poder às mulheres e jovens moças do Congo. Para desenvolver os mecanismos para proteger estas mulheres, para parar estes crimes horrorosos e desumanos.

Recomendações para terminar com a violência contra as mulheres e jovens moças na República Democrática do Congo: a impunidade para violência sexual tem de terminar. Apesar de centenas de milhares de mulheres e jovens violadas, não houve praticamente nenhuma acusação. Incumbe a toda comunidade internacional fortalecer mecanismos na República Democrática do Congo para assegurar que os violadores sejam levados à justiça e as vítimas protegidas através de ações judiciais. (Mais mulheres juízas, assim como mais mulheres na polícia e advogadas são essenciais para que isto aconteça).

Está previsto que o Conselho de Segurança vá à República Democrática do Congo na próxima semana [julho de 2007]. É importante que eles:

a) Falem com o Governo seriamente sobre o assunto da violência sexual. Devem abordar este tema com o Presidente e perguntar especificamente o que é que ele está a fazer para assegurar que os militares (que são quem mais cometem estes crimes) não cometam crimes de violência sexual e que os comandantes sejam responsabilizados pelas ações dos seus soldados e que os soldados também sejam levados à justiça.

b) Ao reunir-se com o parlamento e as autoridades eleitas, o Conselho de Segurança deve insistir para que se estabeleça uma comissão parlamentária sobre a violência sexual. Deve também apelar para que sê de início a um debate público com o ministro da defesa sobre este tema.

A Missão das Nações Unidas na República Democrática do Congo (MONUC) deveria estabelecer uma unidade de combate contra a violência sexual, incluindo pessoal militar e civil, para dar prioridade à “resposta dada às sobreviventes de violência sexual e à proteção de mulheres e crianças, sobre tudo em Goma e Bakuvu”. Os países que contribuem com tropas também têm de ter um papel mais ativo enviando mulheres como soldados da paz.

Os estados membros e as Nações Unidas devem mostrar o seu compromisso para terminar com a violência contra as mulheres da República Democrática do Congo através da atribuição de recursos financeiros significantes. Existem alguns bons projetos, por exemplo o Hospital de Panzi, mas isto é muito pouco quando consideramos as enormes necessidades e a magnitude da violência. São precisos mais recursos que poderiam ser usados para apoiar, por exemplo, programas de rádio/televisão por mulheres sobre os direitos das mulheres, violência contra as mulheres e outros temas importantes que precisam de ser abordados para romper o silêncio sobre a violência sexual.

Os membros do Conselho de Segurança das Nações Unidas devem pedir ao Secretário-geral que providencie um relatório sobre a situação da violência sexual na República Democrática do Congo. Este relatório deve ser recebido pelo Conselho em tempo oportuno (3 meses).

Texto de Eve Ensler, publicado originalmente em 15 de junho de 2007 na Tlaxcala, rede de tradutores pela diversidade lingüística. Tradução para o português: Cristina Santos, membro Tlaxcala. Esta tradução pode ser reproduzida livremente na condição de que sua integridade seja respeitada, bem como a menção ao autor, aos tradutores, aos revisores e à fonte. Original aqui.

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novembro 04, 2007

Países ricos mantêm guerra permanente na República Democrática do Congo

Na imprensa internacional, a República Democrática do Congo, em raras aparições televisivas, é retratada como um país de bárbaros e de mulheres atordoadas, enquanto a China é rotineiramente retratada como um país do futuro, com uma economia mista e cada vez mais integrada ao “mercado”. Nada sobre as armas que patrocinam o genocídio na África Central. Estados Unidos, Rússia e outros país fazem aliança tática pelo livre comércio de armas, motor do moderno genocídio globalizado


Mãe cuida de seus dois filhos, ambos com malária e disenteria, no hospital da 'Médicos Sem Fronteiras' em Bunia. Foto de James Nachtwey, verão africano de 2005.

Por Gustavo Barreto - gustavo@fazendomedia.com

Em um país da África Central, há pelo menos 10 anos há relatos de mulheres que são forçadas, debaixo da ameaça de armas, a ingerir excrementos, beber urina ou a comer bebês mortos. São testemunhas da mutilação genital dos seus maridos ou violadas durante semanas por grupos de homens. Relatos mostram imagens como “florestas que cheiravam a morte” e cenários em que “não se podia dar nem cinco passos sem tropeçar em um corpo”. Em alguns casos, meninos eram forçados a fazer sexo com suas próprias mães e irmãs.

No entanto, o crime mais terrível é a passividade da comunidade internacional, das instituições governamentais e dos meios de comunicação com este país. Nas palavras de uma ativista que recentemente o visitou: a indiferença total do mundo perante tal extermínio. “E enquanto nós estamos aqui a escrever o nosso relatório, há mulheres que estão a ser violadas, meninas que estão a ser destroçadas para sempre, mulheres que estão a ser testemunhas do assassinato (a golpe de catana) das suas famílias e outras que estão a ser infectadas pelo o vírus da AIDS. Onde está a nossa indignação? Onde está a consciência das pessoas?”

Este é o relato de Eve Ensler ao Conselho de Segurança da ONU (leia ao final), publicado em junho de 2007. Eve afirmou durante reunião na ONU: “As mulheres são o centro de qualquer cultura e sociedade. Embora possam não ter poder ou direitos, como são tratadas, como são, ou não são, valorizadas, indica o que a sociedade sente em relação à própria vida. Estou aqui para vos implorar, àqueles que têm poder, para declarar estado de emergência no Leste do Congo, para dar um nome ao que está a ser feito às mulheres: feminicídio”.

A crise na República Democrática do Congo, país com população estimada em 54 milhões de pessoas localizado no coração da África, é apontada por alguns meios de comunicação no exterior, a partir de abordagens diferenciadas, mas sem qualquer reação suficientemente considerável a fim de levar à Justiça a notáveis criminosos. Algo próximo de 5 milhões de pessoas morreram desde o início oficial dos conflitos, em 1998, não só por causa da violência, mas também por doenças negligenciadas no país, como a malária e o sarampo. Também oficialmente, a guerra “acabou” em 2004.


Criança que sofre de subnutrição medida por equipe da 'Médicos Sem Fronteiras' em clínica em Kanyabayonga. Foto de James Nachtwey, verão africano de 2005.

A ativista Eve Ensler, autora da peça “Monólogos da Vagina” – traduzida para mais de 45 línguas e está em exibição em teatros em todo o mundo, incluindo no Off-Broadway’s Westside Theater e no West End de Londres – tem dedicado a sua vida à luta contra violência e fundou o V-Day, um movimento global que apóia organizações anti-violência em todo o mundo, ajudando-as a continuar e expandir o seu trabalho principal em campo e, ao mesmo tempo, chamando à atenção do público para a luta contra a violência mundial contra as mulheres – incluindo violação, espancamento, incesto, mutilação genital feminina e escravidão sexual.

“Passei duas semanas em Bukavu e Goma entrevistando as sobreviventes. Algumas eram de Bunia. Efetuei pelo menos oito horas de entrevistas por dia. Almocei e fui a sessões de terapia com estas mulheres. Chorei com elas. O nível de atrocidades supera a imaginação. Não tinha visto em nenhuma parte este tipo de violência, de tortura sexual, de crueldade e de barbárie. No leste do Congo existe um clima de violência. Nesta zona as violações tornaram-se, tal como me disse uma sobrevivente, um esporte nacional”, relatou Eve na ocasião (relato completo ao final do texto).

A ativista Christine Schuler-Deschryver completou, em entrevista ao site Democracy Now! em outubro de 2007, que 60% da violência sexual que vem ocorrendo no leste do Congo é cometida pelos mesmos grupos que cometeram o genocídio em Ruanda, em 1994 – “Hutus que cometeram o genocídio em seu país”.

Contexto internacional
Um articulista da respeitada revista alternativa Z Magazine, Keith Harmon Snow, levantou suspeitas sobre Schuler-Deschryver, explicitando sua ligação com a elite branca do país e alertando que há atualmente uma estratégia internacional para, assim como em Ruanda, culpar os grupos locais por todo o caos no país – o que permite esquecer países e empresas que financiam os armamentos e se beneficiam do caos, como detalha em seu artigo sobre o tema.

A crise no país, a partir de qualquer ponto de vista, é urgente, como destacamos no início de 2006 neste Fazendo Media (veja o link no final do texto) e como vem destacando persistentemente a organização internacional de direitos humanos Anistia Internacional (AI). Em junho de 2006, a AI acusou a China de ser “o exportador de armas mais irresponsável do mundo”. No relatório "China: apoio a conflitos e abusos de direitos humanos" (China: Sustaining conflict and human rights abuses, a organização afirmara que as armas chinesas servem de combustível para conflitos em países onde ocorrem freqüentes violações dos direitos humanos, como é o caso de Congo. A Anistia exigiu que a China seja mais transparente e que abra as informações sobre suas exportações de armas.

Autoridades chinesas repudiaram o documento alegando que o país assume uma atitude de prudência com relação às exportações de armas. O porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, Jiang Yu, afirmou que a política de exportação de armamentos respeita três princípios: aumento da capacidade de defesa das nações importadoras, que as armas exportadas não afetem a paz, a segurança e a estabilidade regional e global e do país importador e que não sejam usadas para interferir nos assuntos internos do país.

Helen Huges, autora do relatório da AI, rebateu afirmando que, apesar de a China descrever suas exportações de armas como "cuidadosas e responsáveis", a realidade é bem diferente. Em nome da Anistia, Huges pediu que o país se comprometesse a suspender as exportações de armas para países onde elas podem ser usadas como instrumento de abuso dos direitos humanos. A pesquisadora e especialista em controle de armas afirmou, ainda, que a China é a única do grupo de grandes exportadores de armas que ainda não assinou nenhum acordo multilateral nesse sentido.


Uma senhora de 70 anos que fora estuprada por diversos soldados do governo enquanto trabalhava no campo, próximo à vila onde mora. Após o acontecimento, ela se aconselhou na clínica que trata violência sexual mantida pela 'Médicos Sem Fronteiras' em Kanyabayonga. Foto de James Nachtwey, verão africano de 2005.

De acordo com dados do relatório, caminhões militares, fuzis, granadas e outras armas militares chinesas - entre elas, cópias do fuzil russo AK-47 - foram vendidas pela China para diversos países da região dos Grandes Lagos africanos nos últimos 15 anos, entre eles Congo, Uganda, Ruanda, Sudão e Burundi – todos com graves problemas de desrespeito aos direitos humanos. Ainda segundo a Anistia, o volume de exportações de armas da China ultrapassa a cifra de um bilhão de dólares por ano.

Armas chinesas e russas circulam em locais críticos de guerra
A Anistia Internacional vai mais longe: afirma que os rifles AK-47 chineses são comuns entre soldados, milicianos e integrantes de grupos armados na província de Kivu e no distrito de Ituri, no Congo. A organização vai direto ao ponto: “Nestes locais atrocidades são freqüentemente cometidas com tais armas, pela iniciativa de negócios internacionais envolvendo o controle de recursos naturais valiosos”. O relatório registra, por exemplo, que investigadores mapearam, em novembro de 2005, a origem de 1.100 armas coletadas pela Missão da ONU no país (MONUC), mais especificamente em Bunia, distrito de Ituri. Nada menos que 70% são rifles AK-47 chineses, entregues diretamente pela China na República Democrática do Congo, Uganda, Ruanda e Burundi ou atravessando países que mantém relações com a China, como Albânia e Zimbábue.

Na imprensa internacional, o Congo aparece freqüentemente como um país de bárbaros e de mulheres traumatizadas, enquanto a China é rotineiramente retratada como um país do futuro, com uma economia mista e cada vez mais integrada ao mercado. Nada sobre as armas que patrocinam o genocídio na África Central. E é precisamente sobre isso que fala Snow em seu artigo na Z Magazine.

Além disso, no começo deste ano a própria Anistia levantou outra questão abordada por Snow: Os “diamantes de sangue”, ou diamantes de zonas em conflito, exacerbam os conflitos, as guerras civis e os abusos contra os direitos humanos. Com estes diamantes, segunda a AI, foram financiados na África conflitos que provocaram a morte e o deslocamento de milhões de pessoas nos últimos tempos. Durante estes conflitos, os benefícios do comércio ilegal de diamantes, que chegavam a milhares de milhões de dólares, serviram para que os caudilhos militares e os grupos rebeldes comprassem armas. Calcula-se que em Angola, na República Democrática do Congo, na Libéria e em Serra Leoa morreram 3,7 milhões de pessoas em conflitos mantidos graças aos diamantes.

Embora a guerra já tenha acabado em Angola e Serra Leoa, e os combates tenham diminuído na República Democrática do Congo, o problema dos diamantes de regiões em conflito não desapareceu, alerta a organização.

Apesar de ter começado, em 2003, a aplicação de um sistema internacional de certificação de diamantes, denominado Processo Kimberley, os diamantes de zonas em conflito da Costa do Marfim passam para o comércio legítimo de diamantes através de Gana. “Como mostrou o brutal conflito de Serra Leoa, mesmo uma pequena quantidade de diamantes de regiões em conflito pode causar grandes estragos em um país. Entre 1991 e 2002, morreram violentamente em Serra Leoa mais de 50 mil pessoas, mais de dois milhões viram-se deslocadas dentro do país ou tornaram-se refugiados em outros países, e milhares foram vítimas de mutilações, estupros ou tortura. Atualmente, Serra Leoa ainda está se recuperando das conseqüências do conflito”, lembra nota de imprensa da Anistia.

Filme retratou experiência em Serra Leoa
Segundo a Anistia, o filme “Diamante de Sangre” (“Blood Diamond”) é uma oportuna lembrança aos governos e à indústria dos diamantes de que devem garantir que diamantes de zonas em conflito não cheguem aos consumidores. Ambientado na situação de caos e guerra civil que sofreu Serra Leoa na década de 1990, “Diamante de Sangue” conta a história de Danny Archer (representado pelo ator Leonardo DiCaprio), mercenário sul-africano, e Solomon Vandy (representado pelo ator Djimon Hounsou), pescador de etnia mende. Ambos são africanos, mas suas histórias e circunstâncias não poderiam ser mais distintas – até que seus destinos convergem em uma busca comum para recuperar um raro diamante rosa, que pode mudar suas vidas.

Archer, que está preso por contrabando, fica sabendo que Solomon, a quem separaram de sua família e obrigaram a trabalhar nas minas de diamantes, havia encontrado a extraordinária pedra preciosa e a havia escondido. Com a ajuda de Maddy Bowen (atriz Jennifer Connelly), jornalista norte-americana cujo idealismo torna-se suavizado por uma relação cada vez mais profunda com Archer, os homens empreendem uma longa jornada através do território rebelde. Mais que a busca por um valioso diamante, para Archer, a viagem pode ser uma segunda oportunidade que pensava que nunca teria, enquanto que a Solomon pode ajudá-lo a recuperar o que mais quer: seu filho, a quem os rebeldes seqüestraram e obrigaram a se tornar um menino soldado.

Diamante de sangue é dirigido por Edward Zwick. Com roteiro de Charles Leavitt, criador de “Um mundo a sua medida” (“The Mighty”), a partir de um relato de Leavitt e C. Gaby Mitchell. É produzido por Paula Weinstein, Marshall Herskovitz, Edward Zwick, Graham King y Gillian Gorfil, e os produtores executivos são Len Amato e Benjamin Waisbren, com Kevin De La Noy como co-produtor.

Contradições evidenciadas
As armas de mão, de pequeno porte, também tem contribuído para violações dos direitos humanos em áreas não-conflituosas, destacou o relatório sobre a China. Impressiona a quantidade de países importadores deste tipo de arma: Argentina, Austrália, Bangladesh, Bolívia, Burkina Faso, Canadá, Chile, Costa Rica, República Tcheca, República Dominicana, Finlândia, Alemanha, Guatemala, Hong Kong, Índia, Indonésia, Irã, Itália, Macau, Malásia, Niger, Paquistão, Filipinas, Arábia Saudita, Eslováquia, Sudão, Tailândia e Uganda, entre outros.

No Nepal, assim como no Congo, a China demonstrou como funciona a política da falsa solidariedade com os povos em situação de guerra civil. Em janeiro de 2006, quando o Nepal passou por uma crise envolvendo confrontos internos militares e uma onde de protestos pacíficos, um importante membro do governo chinês afirmou: “Esperamos que todas as forças no Nepal possam estreitar suas diferenças por meio do diálogo e trabalharem unidos para o desenvolvimento e para a prosperidade”.

Em fevereiro, pouco menos de um mês após a declaração, o governo local pagou ao governo chinês 10 milhões de dólares por rifles. No Congo, relata a AI, as armas são usadas em grande parte pelo próprio governo para reprimir protestos populares, como ocorreu durante todo o ano de 2005, com um saldo de centenas de vidas perdidas.

No próximo artigo (leia clicando aqui)

* Estupro de mulheres na região
* O controle de armas leves no mundo
* O ilustrativo caso do Paquistão
* Resumo do relato de Eve Ensler no Conselho de Segurança das Nações Unidas